Ai mísero de mim! Ai, infeliz!
Descobrir oh Deus pretendo, já que me tratas assim,
que delito cometi fatal, contra ti, nascendo.
Mas eu nasci, e compreendo
que o crime foi cometido
pois o delito maior do homem é ter nascido.
Só queria saber se em mais algo te onfendi
para me castigares mais.
Não nasceram os demais?
Então, se os outros nasceram
que privilégios tiveram
que eu não tive jamais?
Nasce o pássaro dourado,
jóia de tanta beleza
e é flor de pluma e riqueza
ou bem ramalhete alado
quando o céu desanuviado
corta com velocidade
negando-se a piedade
do ninho que deixa em calma:
e por que tendo mais alma
tenho menos liberdade?
Nasce a fera e muito cedo
e humana necessidade
ensina-lhe a crueldade,
monstro de seu labirinto;
e, eu com melhor instinto
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe e não respira,
aborto de ovas e lama,
é apenas barco de escamas,
quando nas ondas se mira
e por toda parte gira
medindo a imensidade
de sua capacidade;
Tanto lhe dá sul ou norte.
E eu que sei da minha sorte
tenho menos liberdade?
Nasce o regato, serpente
que entre flores se desata
e como cobra de prata
entre flores se distende
celebrando a majestade
do campo aberto à fugida.
Por que eu, tendo mais vida
tenho menos liberdade?
Em chegando esta paixão,
num vulcão todo transfeito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração;
que lei, justiça ou razão
recusar aos homens sabe
privilégio tão suave
licença tão essencial,
dada por Deus ao cristal,
a um peixe, a um bruto, e a uma ave?"
(Trecho de "A vida é um sonho" - Peça escrita por Calderón de La Barca, 1663)